segunda-feira, 20 de setembro de 2010

MAPAS - Por Raúl Antelo


PARA ALÉM DAS TORCIDAS DE FUTEBOL, UM EVENTO PARA DISCUTIR O CINEMA, A CULTURA E A LITERATURA DA ARGENTINA

Em que lugar se deu, por parte de um brasileiro, a fundação da primeira Universidade? Qual o país com maior número de traduções da literatura brasileira? Qual a cidadania da compositora que cria, em São Paulo, o primeiro laboratório brasileiro de música eletro-acústica, chegando a compor nele uma série de peças baseadas em poemas de Supervielle ou Pizarnik? Com relação a qual cultura estrangeira pretendia Mário de Andrade, em meados dos anos 20, escrever um livro, por entender que seria emblemático para compreender a própria modernização do pais? Onde se apresentou a primeira exposição de arte moderna brasileira e onde se editou o primiero estudo dedicado ao tema? Se, para responder a todas essas questões, você optou pela Argentina, acertou. Foi Fernando de Trejo y Sanabria, natural de São Francisco do Sul, quem fundou a primeira universidade do Prata, em Córdoba, no século XVI; foi Susana Baron Supervielle, aluna de Koellreutter, quem abriu o caminho eletro-acústico paulista; foi Jorge Romero Brest quem publicou, em Buenos Aires, o primeiro livro, capa dura, fartas ilustrações, ainda na década de 40, totalmente dedicado ao modernismo brasileiro, como retribuindo o gesto, inconsequente, em parte, de Mário de Andrade, vinte anos antes. Nada disso é hoje evidente, para o grande público. Por que isso acontece?





Machado de Assis nos oferece, aliás, um testemunho interessante dessas turbulentas relações entre o Brasil e a Argentina. Em meados de 1888, pouco antes da morte de Sarmiento, Machado evoca seu único encontro com o escritor argentino, o herói cultural civilizatório, e se surpreende de que “uma nação abafada pelo despotismo, sangrada pelas revoluções, na qual o poder não decorria mais que da força vencedora e da vontade pessoal”, apresentasse um espetáculo bem interessante: “um general patriota, que alguns anos antes, após uma revolução e uma batalha decisiva, fora elevado ao poder e fundara a liberdade constitucional, ia entregar tranqüilamente as rédeas do Estado, não a outro general triunfante, depois de nova revolução, mas a um simples legista, ausente da pátria, eleito livremente por seus concidadãos. Era evidente que esse povo, apesar da escola em que aprendera, tinha a aptidão da liberdade; era claro também, que os seus homens públicos, em meio das competências que os separavam, e porventura ainda os separam, sabiam unir-se para um fim comum e superior. Sarmiento chegou a Buenos Aires; o General Mitre entregou-lhe o poder, tal qual o constituíra e preservara da violência e do desânimo".

É bem verdade que Machado idealizaria um bocado quando, vinte anos depois, evocasse aquela cena, associando-a a uma nação “próspera, rica, pacífica, naturalmente ambiciosa de progresso e esplendor”, que tendo esquecido a opressão, desaprendera a caudilhagem, passando a adotar os benefícios da liberdade e da ordem. Mas é que a relação entre o Brasil e a Argentina nunca é um dado espontâneo ou imediato da vida social. Ela é uma trabalhosa e, não raro, uma atrapalhada construção simbólica, à qual não faltam, certamente, os equívocos. Até mesmo os de Machado de Assis. Isto porque as relações de representação, sobre as quais se sustenta a leitura brasileira da cultura argentina, nunca respondem a um nível secundário, a refletir algum tipo de estrutura primeira, constituída antes, fora ou além do próprio discurso. Muito pelo contrário: não existe relação de representação para além de sua própria genealogia. Portanto, as relações de representação são o espaço específico em que se constroem ambas as sociedades e, nesse sentido, a próxima realização de uma série de eventos, na UFSC, para discutir a cultura, o cinema e a literatura argentinas, pode ser uma raríssima ocasião para potencializar essas relações de representação entre os dois países, relações que são bem mais variadas e complexas do que as dos contingentes de turistas ou das torcidas de futebol, atravessados sempre, tanto uns quanto as outras, por essas relações de representação, que nada têm de objetivo ou desinteressado.

Qual a importância desse evento? É que a representação cultural argentina que se tem no Brasil (assim como a do Brasil na Argentina), nunca são subalternas ou derivadas. Não são provocadas pela brecha entre o espaço comunitário universal e o particularismo das vontades coletivas locais. Muito pelo contrário, a assimetria entre a comunidade potencial do Mercosul, último nome escolhido para nomear a continuidade supra-regional, que nos une, ao separar-nos, e as vontades coletivas em ato, é a própria fonte do jogo simbólico da modernidade, sempre dual, sempre esquivo, ora testando nossos limites, ora enfrentando-nos com nossas impossibilidades, deparando-nos tanto com nossa própria penúria imaginativa, quanto com nosso ressentimento face ao outro, que, por ser semelhante, muitas vezes ameaça. E, assim, é imperioso compreender esse desconhecido como algo singular.

Qual a singularidade da cultura argentina? A cultura argentina é, de fato, singular se por singularidade entendemos a diferença em relação a qualquer outro objeto cultural, não no sentido de ela ser uma manifestação inequívoca ou irrepetível de traços gerais, mas como um aspecto peculiar, que percebemos em resistência, ou como um excesso, em relação a qualquer outra determinação geral pré-existente. A singularidade não decorre, portanto, de um núcleo de materialidade irredutível, ou de uma contingência impenetrável, mas de uma configuração de propriedades bem mais amplas. Define uma entidade. Ultrapassa as possibilidades combinatórias, de hábito previstas pelas normas culturais. È constitutivamente impura, sempre aberta a contaminações, deslocamentos e acidentes fortuitos. Nada tem de inimitável, mas, ao contrário, uma singularidade é a mais pura impura mescla. A singularidade de uma cultura é, então, fundamentalmente imitável e mimética, porque ela produz uma série de réplicas e respostas à solicitação de uma saída para ela mesma.

À época da revolta tenentista, que marca, de fato, o alheamento de São Paulo com relação à política do resto do Brasil, Mário de Andrade imaginou uma guerra entre o Brasil e a Argentina. “Vencendo ou apanhando é bem possível que se mudasse de colorido certas partes dos mapas impressos que ensinam a geografia do universo; é possível que se fizesse muitas comemorações com muita gritaria de miserável povo inconsciente e muita gritaria de gente que se diz instruida, porém, mais besta do que um burro; é possível que se fizesse novas estátuas horrorosas e mais hinos pras coitadas das criancinhas dos grupos escolares decorarem e na certa que apareciam muitos soldados desconhecidos mortos pela pátria e que estão agora em moda. Depois? Depois, vitoriosos ou vencidos ficávamos com os mortos em roda, conhecidos, parentes, amigos, tanta gente boa, tanta gente querida morta, moça, ficávamos com uma dor muito sofrida, mais inquietações, mais abatimentos, mais amarguras, muito raciocínio panema. E uma raiva surda desses argentinos que afinal são tanto nossos irmãos que nem eu sou irmão do Manuel Bandeira, do dr. Arthur Bernardes que nem conheço e até do dr. Graça Aranha que está de mal comigo. E ficávamos com uma dívida macota mais enormissima que a de agora... E depois? Depois tudo continuava da mesma forma progredindo, progredindo, talvez mais união, talvez mais desconfiança, talvez mais consciência de nacionalidade moral, os argentinos e brasileiros vivendo, sofrendo, gozando e afinal uma quarta-feira batendo com o rabo na cerca e indo pro inferno, pro purgatório ou pro céu”.

Concretamente, portanto, a singularidade da cultura argentina não é uma propriedade dessa nação, mas um evento de singularização que ocorre na leitura que dela forja-se aqui, no Brasil. Ela não acontece fora das respostas daqueles que, como nós, com ela nos deparamos. Ela é produzida, não é dada de antemão. Sua emergência (1810?) é também o início de sua erosão, de seu desgaste. Ela, em suma, nunca está pronta, acabada. A rigor, ela não existe. Está sempre se transformando, na medida em que ativa mudanças culturais imprevisíveis.

Samuel Titã, resenhando, semana passada, na Folha de S.Paulo, o recentíssimo romance de Ricardo Piglia, Blanco Nocturno, que acaba de ser publicado e que, no colóquio da UFSC, será motivo de análise para Adriana Pérsico, apontava que o verdadeiro protagonista do texto de Piglia, a ditar, na verdade, as regras do jogo policial, é o pampa, esse espaço que se franqueia à exploração agrícola e à elaboração simbólica, em meados do século 19, com as assim chamadas "campanhas do deserto", eufemismo para nomear terríveis guerras de extermínio biopolítico das populações indígenas, que lançam as bases da inserção do país no capitalismo mundial. Nesse sentido, o mal de origem que produziu esse espaço esvaziado, essa terra roubada, legada e herdada pelo poder econômico, marca não só os personagens de Blanco Nocturno, mas cria, também, um cenário simbólico que mais parece uma ilustração da premissa ótica de Paul Klee: não se trata de reproduzir o visível, mas de tornar visível, como um alvo noturno.

O próprio Ricardo Piglia, analisando certo veio dos artistas locais por aquilo que se poderia chamar o in-existente, disse que os pintores abstratos argentinos, ativos desde os anos 40 do século 20, compreederam isso logo de início, levando a tese ao limite. Dedicaram-se a pintar os modos de ver a realidade, antes que ela mesma. As lentes, as mediações técnicas, os dispositivos puseram, assim, em crise, a subjetividade do homem natural. A arte argentina compreendeu que é preciso desconfiar daquilo que se acredita ver e, portanto, também daquilo que se sente, quando se acredita ver o que se vê. A arte argentina do século 20 pinta, filma, narra a desconfiança da visão espontânea e é carregada por isso mesmo de forte negatividade. Mas, mesmo assim, é preciso esclarecer que se poderiam reconhecer, no interior da cultura argentina, dois tipos de negatividade. Há, de um lado, uma negatividade destrutiva que, guiada por uma inequívoca paixão pela autenticidade do real, busca reconfigurar a identidade, apelando à dialética destruição-reconstrução. Mas, junto a ela, há também uma negatividade subtrativa, que busca a diferença mínima, através da distância situada no interior do próprio real. Vamos esquematizar. Alinhados pela primeira, Klee e Piglia. Marcados pela segunda, Duchamp e Aira.

Ora, tanto na exposição de fotografias captadas por Sebastián Feire e Paola Cortés Rocca, O que é um autor, como nas sessões de debate sobre cinema e literatura, será possível rearmar esse puzzle chamado Argentina. Estão aí alguns dos primeiros filmes sonoros, narrando a épica gauchesca (que Glauber Rocha, exilado do Brasil, enxertaria em um dos seus filmes) ou a emergência da cultura urbana de massas, a mesma que filmes recentes, como Histórias Extraordinárias (2009) ou Dois irmãos (2010) captam em momento de mudança e desagregação. Está o cinema político dos anos 60, como o banidíssimo A hora dos fornos, mas também o cinema pós-crise de 2001. Está o cinema cool de Cozarinsky ou de Hugo Santiago, este último narrando, a partir de roteiro de Borges e Bioy, a invasão ao imaginário país de Aquiléia, espaço em que facilmente reconhecemos o futuro da Argentina, do Uruguai, ou até mesmo do Brasil. Mas está também o cinema de sentimento, de pathos político, de Favio. Está uma curiosa adaptação de Bodas de sangue, o clássico de García Lorca, filmado em Buenos Aires em 1938, desconhecida pelos espanhóis até 2009, com a mesmíssima Xirgu, heroína do teatro catalão. E, no final do mês, com professores que vão desde o patriarca Noé Jitrik, até os mais jovens, como Gonzalo Aguilar ou Daniel Link, haverá discussões de aspectos centrais dessa dinâmica cultural: 200 anos de poesia com Jorge Monteleone, aqui conhecido pela antologia Pontes que elaborou com Heloísa Buarque de Holanda; a leitura desconstrutiva de Roberto Ferro, que estará ministrando curso na UFSC, em setembro; a singularidade de um atípico como Lamborghini, na visão de Nuria Girona, vinda de Valência, ou as derivas de literatura e revolução, segundo a professora Nouzeilles, de Princeton, autora do clássico da Routledge, The Argentina Reader. Um programa para não perder e que pode ser acompanhado através de http://www.onetti.cce.ufsc.br/simposio/index.html ou http://simposioliteraturaargentinaufsc.blogspot.com







Cena do filme “Apuntes para una Biografía Imaginaria”, de Cozarinski que será exibido dia 22/09/2010 as 16h no auditório Henrique Fontes.

Fonte: Anexo Ideias


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